quinta-feira, 27 de agosto de 2015

RACIOCINANDO SOBRE O DILÚVIO




Pintura a óleo do dilúvio bíblico (The Deluge) por Francis Danby (1793-1861).

O famoso mito do dilúvio alega ter havido uma inundação planetária, que teria quase extinto a humanidade e a maioria das espécies de seres vivos, com um heroi humano destinado a salvar o mundo. Normalmente é um castigo enviado por um ou vários deuses para reduzir a população mundial e eliminar os que não seguiam um ou outro deus. Atualmente, a maioria das pessoas conhece a mitologia da dilúvio através da Bíblia, livro sagrado das religiões cristãs. No entanto, essa mitologia remete à religião suméria, a pelo menos 1,6 mil anos antes de surgir o cristianismo. O dilúvio é descrito nas primeiras obras de literatura criadas pela humanidade, logo que surgiram as primeiras cidades do mundo, do império Sumério, na região da Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque. Aparece no mito da criação suméria, nas histórias épicas de Gilgamesh (o primeiro super-heroi da história escrita), Ziusudra e Atrahasis. Antes mesmo de ser incluso na Torah, o Velho Testamento da Bíblia, que serve de base para a religião do judaísmo, o mito já havia sido incorporado por diversas civilizações posteriores à Suméria. É reproduzido nos livros religiosos hindus das Puranas, Deucalion na mitologia grega, nas tradições K´iche´, dos maias e em muitas outras culturas religiosas pelo mundo.

As características de mito e não fato histórico são evidentes ao estudar cada um desses contos literários étnicos e compará-los com o conhecimento da história, geologia, paleontologia e genética. Pela Suméria ter sido a primeira civilização humana, com a Babilônia e outras das primeiras cidades do mundo, o dilúvio parece ter sido um aspecto da cultura suméria que permaneceu vivo no inconsciente coletivo através da tradição oral de contos na medida em que a humanidade se espalhava pelo planeta. Mas, como em qualquer brincadeira popular de “telefone sem fio”, quando o referencial original (o conto escrito) deixa de ser a referência, a transmissão oral do conto perde qualidade e sofre distorções. Quando novas cidades começaram a se estabelecer longe da Mesopotâmia, levaram consigo parte da cultura suméria original, modificada conforme peculiaridades de cada nova sociedade; como foi o caso com o mito do dilúvio. Nas estórias, o dilúvio é causado por chuvas, enchente fluvial ou avanço do mar. Em cada uma dessas versões posteriores à original Suméria, há variações culturais, geográficas e de época, que tornam todas as versões do mito do dilúvio inconciliáveis. E não há nenhuma razão lógica para considerar a versão bíblica do dilúvio mais realista que as outras versões culturais. Nem mesmo a versão original suméria. Mas avancemos para evidências mais concretas que desacreditam o dilúvio.

A geologia é atualmente uma ciência muito bem desenvolvida, capaz de reconstruir o passado do Planeta Terra, indicando como se formaram as camadas de solo, montanhas, como variou o nível do mar e eventos de secas e inundações. Há claras e fortes evidências geológicas, que podem ser verificadas por qualquer um que se dê ao trabalho de estudar o tema, de que NUNCA na história da civilização humana o planeta foi completamente inundado. Obviamente houve muitas enchentes, tsunamis, variações do nível do mar, mas sempre localizadas, nunca em todo o planeta ao mesmo tempo. Cada sociedade exposta a alguma dessas formas de alagamento, se viu “sob a ação de Deus, ou de deuses, em que acreditavam” e pensou estar vivendo um fenômeno mundial, afinal sua noção de mundo era ainda mais restrita à área geográfica onde viviam.

Seja Noé no dilúvio bíblico ou o Rei Ziusudra no dilúvio sumério, os mitos contam que um homem e sua família construíram uma embarcação e reuniram um casal de cada espécie animal para salvá-los da extinção. Essa é a parte mais absurda do mito e facilmente destruída pela lógica. Há aproximadamente 8,7 milhões de espécies de seres vivos no planeta; assim, chega a ser hilário imaginar uma família cuidando de 17,4 milhões de indivíduos em uma embarcação durante um ano. Aliás, se o número total de espécies é desconhecido pela ciência hoje, imagine por Noé (ou Ziusudra) e sua família naquela época. Muitas dessas espécies são carnívoras, predadoras, outras são vetores de doenças, algumas dependem de grandes estoques de alimentos só encontrados onde elas vivem, outras requerem condições ambientais muito específicas (temperatura, pressão, salinidade, etc). A arca de Noé teria de ser o maior laboratório e viveiro flutuante jamais concebido, e isto há uns 4 mil anos atrás. Inevitavelmente, muitas espécies teriam sido extintas, afinal como manter alimentado e comportado um casal de leões que consome 10 kg de carne por dia numa arca cheia de presas? Como salvar as inúmeras espécies de microrganismos invisíveis a olho nu e essenciais às outras formas de vida da Terra? Como reunir na arca construída no Oriente Médio animais de áreas isoladas como onças do Brasil, bisões do Canadá, elefantes da África, ursos polares e cangurus da Austrália? Quem entende de genética sabe que a redução da variabilidade genética decorrente de um casal por espécie geralmente leva à extinção da espécie. Os sinais de tal redução da variabilidade genética em todas as espécies seria facilmente reconhecíveis pela biologia molecular e eles não existem. A ciência consegue identificar vários eventos de extinção em massa de espécies no passado e estimar suas causas. Nenhum desses eventos de extinção combinam com as datas das mitologias do dilúvio e como dito antes, há claros sinais de nunca ter havido uma inundação global na história humana.

Princípios de engenharia naval mostram que própria construção de uma embarcação tão grande não é resistente para a navegação oceânica sem reforços em ferro, tecnologia não disponível a milhares de anos. Mesmo os navios de madeira mais modernos e reforçados com ferro chegam até uns 100 m de comprimento, absurdamente pequeno para caber tantos casais de animais. A suposta arca de Noé tinha 135 m de pura madeira, uma impossibilidade de engenharia. É mais do que óbvio que não cabem nem os casais de animais de apenas um país em uma arca de 135 m. Há alguns estudos científicos que detalham as inúmeras impossibilidades desse mito em longos textos e explicações. Como por exemplo, a velocidade incrível necessária para colocar milhões de animais a bordo em apenas 7 dias, uma taxa de vários animais embarcados por segundo. No entanto, se o leitor não se convenceu com estes argumentos, não o fará com os mais detalhados.

Provavelmente a maioria dos falantes de Português (no Brasil, Portugal, alguns países da África, etc) crê na versão bíblica do dilúvio. Advém deste fato que a maioria desses nunca leu a versão bíblica do dilúvio, muito menos as evidências científicas contrárias a esse mito. Tais indivíduos foram ensinados por seus pais e outras pessoas amadas a crer nesse mito e nunca questioná-lo e por respeito aos seus parentes e temor a Deus e assim o fazem. Portanto, os motivos para acreditar neste e em outros mitos são absolutamente compreensíveis e justos, assim como são os meus de escrever tal texto para informar as pessoas. Afinal, rotineiramente somos expostos à reafirmação dos mitos religiosos das sociedades em que vivemos, mas raramente somos expostos aos estudos sobre esses assuntos.

As mitologias do dilúvio possuem grande valor literário, mas nenhum valor histórico. A Bíblia, a Ziusudra, as Puranas e todos os livros religiosos que retratam o mito do dilúvio dizem muito a respeito das sociedades e dos indivíduos que os escreveram, mas nada dizem sobre o divino. Crer no dilúvio em qualquer uma das suas muitas versões religiosas é negar a construção do conhecimento em prol da tradição ignorante. Crer menos e estudar mais é a melhor forma de libertar-se daqueles que querem controlar sua vida controlando suas crenças. E eu não estou falando dos nossos pais, mas sim dos líderes religiosos que gozam de prestígio social, poder e dinheiro para defenderem religiões que enganam e dominam as mentes das pessoas através desse tipo de mito.

Postado por:
Bruno Martini

Oceanógrafo e Mestre em Sistemas Costeiros e Oceânicos pela UFPR. Colaborador da Astrobiology Magazine e Secretário Geral do Núcleo de Pesquisa de Ciências - NUPESC.

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