Por que sou um liberal?
Por Sergio Viula
A palavra liberal vem do latim liber, ou seja, livre ou não-escravo, e me seduz tanto em conotação como em sonoridade.
Não há conceito mais belo do que o da liberdade – o que não neutraliza a angústia
que dela advém (vide Sartre). Mas, numa semana em que três assassinos ajudaram
a renovar os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade
– e inaugurando minhas postagens como CDC (criador de conteúdo) da ARCA, acho
que vale a pena refletir sobre liberdade e esclarecer porque sou um liberal.
Mas o que é liberalismo, afinal?
Posto de modo bem simplificado, liberalismo é uma filosofia
política ou visão do mundo fundada sobre ideais que pretendem ser os da
liberdade e da igualdade, mas ser um liberal não significa exatamente a mesma
coisa para todos os que assim se denominam. Mantenhamos em mente, para melhor
compreensão desse artigo, que os indivíduos liberais geralmente apoiam ideias
como eleições democráticas, direitos civis, liberdade de imprensa, liberdade de
religião, livre comércio e propriedade privada.
Todavia, antes que alguém se precipite acreditando ser um
liberal quem simplesmente adote um ou mais desses pontos-de-vista, é preciso
que se diga que uma pessoa pode defender o livre comércio e a propriedade
privada e ser um conservador. Não é preciso pensar muito: George Bush, um dos
piores presidentes americanos, defendia a propriedade privada e o livre comércio
(desde que na terra alheia, porque ele mesmo estabeleceu várias restrições a
produtos estrangeiros na terra do Tio Sam), mas era um conservador da pior espécie,
inclusive se contrapondo à igualdade plena de grupos minoritários com os do mainstream americano.
Aqui, outra digressão se faz importante. Nos Estados Unidos,
as pessoas tendem a pensar em liberalismo exatamente como o oposto do que se pensa
em quase toda parte no mundo. Muitos americanos entendem o liberalismo como a
atuação de um governo intervencionista que só faz ampliar seu espectro de poder
e a capacidade de tomar decisões centralizadas. Será que Bush entendeu tudo
errado e, querendo ser um liberal, seguiu esse fake de liberalismo made in the USA? É bem provável.
Toda coerção tem que
ser racionalmente justificada
Quando digo que sou um liberal, quero dizer que todo poder
coercitivo exercido pelo Estado e pelas mais diversas instituições deve ser
justificado. Para haver veto a uma ação, é preciso que haja uma justificativa racional,
norteada pelos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade. E aqui
vale evocar o diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo I:
Art. I - Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
E mesmo quando se faz necessária a punição decorrente da
desobediência a algum desses vetos, essa punição deve obedecer aos princípios já
explicitados naquele artigo e colocados ainda mais claramente no artigo 5:
Art. V - Ninguém será
submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Uma rápida olhada em nosso sistema prisional já mostra como
estamos longe desse ideal ainda. Pessoalmente, fico perplexo quando pessoas que
se consideram esclarecidas – nem sempre tanto quanto pensam – defendem exatamente
o contrário, inclusive a pena de morte. Nada mais longe dos princípios humanistas.
O que salta aos olhos quando isso acontece é o fato de que o obscurantismo e o
fanatismo podem se transfigurar até em anjo de luz. A pessoa deixa o templo,
mas carrega a doutrina aparentando outras razões para preservá-la que não as
religiosas.
Igualdade e correção
de injustiças
Outra coisa que considero fundamental, e os liberais também,
é o Estado de direito, ou seja, a aplicação
política da igualdade perante a
lei. E nesse sentido, gostaria de destacar o que dizem os artigos 6 e 7 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Art. VI - Todo homem
tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a
lei.
Art. VII - Todos são
iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da
lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole
a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Vale destacar que o simples fato de assumirmos esses valores
como algo digno de preservação, de observação, não garante sua aplicação à vida
cotidiana. Em outras palavras, as injustiças já instaladas no seio da sociedade
não serão corrigidas por meio de mantras ou palavras mágicas. Geralmente, se
faz necessário dar um tratamento específico às injustiças que, devido aos
processos históricos de cada nação ou região dentro delas, foram se
naturalizando e se tornando parte do status
quo. Daí, a necessidade de leis que combatam o racismo, a xenofobia, a
homofobia, a transfobia, a violência contra a mulher, a violência contra a
criança e o adolescente, e assim por diante. Cada uma dessas violações dos
direitos civis pode ser “justificada” por tradições, convenções, vícios de
pensamento e de linguagem, mas não resistem ao escrutínio da razão acostumada à
liberdade. Por isso, precisam ser problematizadas e tratadas com clareza e
objetividade. Tradições geralmente agem como álibis para as atitudes mais
desumanas e irracionais que a humanidade já desenvolveu e perpetuam essas
mesmas crueldades ad infinitum.
Um bom exemplo é o próprio conceito de raça. É um hábito
pensar que há várias raças de humanos, quando os humanos são, na verdade, A
raça. O restante pode ser etnia, cor de pele, tipo de cabelo, mas a raça
é simplesmente humana, que em palavras melhores seria simplesmente espécie
humana. Então, a própria ideia de raça superior ou inferior é uma construção
absurda, racionalmente injustificável e socialmente destrutiva. Para combater
os efeitos práticos dessa ideia equivocada, torna-se necessária a criação de
leis anti-racismo. Não basta dizer que somos todos iguais se a sociedade teima
em agir como se fôssemos diferentes em valor e dignidade. Por isso, o
legislador enfrenta o problema que aí está com os instrumentos da lei. E é a
lei que legitimará a ação do policial, do juiz e do carcereiro. Qualquer prisão
ou condenação arbitrária poderá, graças ao próprio sistema legal, ser
questionada e revogada.
O raciocínio é semelhante para toda e qualquer correção de
injustiças, não somente os casos de racismo.
Propriedade privada e
uso do corpo
Um liberal defende o direito à propriedade privada. O uso de
um bem é direito exclusivo de seu possuidor. Ele pode desfrutar livremente do
que lhe pertence, vender alugar, doar, modificar, enfim, dispor dele como bem
entender, desde que não viole os direitos de outras pessoas. Claro, pois o fato
de ser dono de um tanque cheio de gasolina, por exemplo, não me dá o direito de
descarta-la toda no primeiro bueiro que eu encontrar na rua. A gasolina é minha
e eu posso fazer dela o que eu bem entender, desde que não infrinja os direitos
alheios. No caso dessa ilustração hipotética, eu colocaria a vida de toda a
comunidade em risco de uma explosão, o meio-ambiente seria gravemente
contaminado, podendo gerar perdas irreparáveis para vidas humanas e não-humanas.
É por adotar o princípio de que posso dispor do que pertence
como bem entender, desde que não viole os direitos alheios, que não admito que governos,
religiões, partidos políticos e outras agremiações ou mesmo pessoas,
individualmente, interfiram sobre o que o indivíduo faz de seu corpo – desde
uma simples tatuagem até o uso dos prazeres.
Por isso, defendo as liberdades sexuais, o direito à reprodução
assistida, o direito à contracepção, o direito ao aborto (nos três primeiros
meses de gestação – fase em que não há qualquer sinal do sistema neural do feto),
a eutanásia, o casamento igualitário, profissionalização da prostituição (feminina
e masculina), a legalização das drogas e o aborto nos três primeiros meses de
gestação (fase em que não há qualquer sinal do sistema neural).
Aqui alguns sentirão os comichões do pensamento tradicional,
conservador, brotarem das entranhas. Claro, muita bobagem já foi associada aos
termos aqui colocados e esse corolário de ideias viciadas pela cosmovisão
judaico-cristã que constitui o pensamento de muitos, inclusive dos que negam
que assim lhes aconteça. Entretanto,
tudo isso está relacionado ao direito do indivíduo fazer de si o que bem
entender. Isso, porém, não impede que se eduquem as pessoas para evitarem o que
possa lhes causar dano, como é o caso do uso de entorpecentes.
Também não se confunda a prostituição praticada sem coerção,
ou seja, como autonomia, com aquela submetida à cafetinagem. O ato de explorar outras pessoas para a
prostituição deve continuar a ser crime, porque viola os direitos da pessoa.
Agora, regulamentar essa atividade como uma profissão faz exatamente o oposto –
protege a pessoa que por decisão própria quiser se dedicar a essa atividade.
Livre mercado e
responsabilidade social
Isso levanta outra questão interessante: o livre mercado.
O fato de ser livre não significa ser inconsequente. Uma
marca famosa de tênis do Ocidente ir buscar mão de obra mais barata em outro
país é legítimo. Agora, se aproveitar da vulnerabilidade de certas populações
para fazê-las trabalhar em regime escravagista ou semelhante deve ser sempre
considerado um crime com a aplicação de punições rígidas aos infratores e reparação
às vítimas.
Penso que o livre mercado já nos trouxe muitos ganhos, mas a
irresponsabilidade e a ganância irrestrita já nos trouxeram muitos prejuízos. O
equilíbrio é encontrado quando os governantes e as sociedades que os elegem
trabalham em conjunto para o bem comum.
Pode parecer fora de propósito por se tratar de livre mercado,
mas a produção científica também enfrenta um sério desafio: como produzir
conhecimento sem ser condicionada pelas leis de mercado. Um exemplo simples,
mas suficientemente ilustrativo: uma doença acomete 100 mil pessoas no mundo. É
possível criar-se um antídoto ou vacina, mas a lógica de mercado diz que não é
financeiramente interessante investir nisso. Seria justo que essas pessoas
continuassem sofrendo por causa dessa lógica estritamente comercial, mesmo
sendo possível interromper sua dor e dar-lhes melhor qualidade de vida, ou o
governo deveria criar meios para que os cientistas desenvolvessem o remédio ou
a vacina para distribuição a esses cidadãos que, além de sua dignidade
intrínseca como seres humanos e pessoas de direito, teoricamente pagam impostos
e/ou colaboram de outras maneiras para a manutenção da sociedade em que estão
inseridas? Esse é só um dos muitos dilemas que estão postos diante de nós.
Gosto de pensar os governos como mediadores em situações de
crise e viabilizadores de relações que resultem em bem estar social. Podemos
dizer que algum Estado ou governo são literal e totalmente liberais no mundo de
hoje? Não. Mas podemos ver que aqueles com maior teor de liberalismo oferecem
meios de realização pessoal e justiça social muito mais eficazes do que seus
contrários. Basta comparar França, Suíça, Suécia, Holanda, Bélgica, Noruega, e
outros semelhantes aos conservadores Irã, Egito, Nigéria, Rússia, Vietnã, Cuba e
por aí vai.
E aqui talvez seja interessante destacar um fato
interessante: a Guerra Fria, com tudo o que foi desprezível nela, também
produziu um efeito positivo. É muito provável que os Estados de Bem-Estar
Social não tivessem surgido na Europa, pelo menos não naquele momento, se os capitalistas
do centro-norte da Europa não tivessem sentido seu domínio ameaçado pelo
pensamento marxista que já seduzia o Leste Europeu. O pragmatismo dos donos do
capital, não seu altruísmo pessoal, é claro, conduziu à distribuição da riqueza
de seus países de um modo mais justo, proporcionando benefícios sociais aos
trabalhadores, aposentados, estudantes e idosos, resultando na qualidade de
vida que vemos naqueles países até hoje. Vencida a ameaça comunista que vinha
da ex-URSS, isso também começa a arrefecer, abrandar, enfraquecer.
No Brasil, enfrentamos um momento em que reacionários tentam
inviabilizar o projeto progressista, humanista, secularista, enfim, o sonho
liberal. São pessoas que não percebem como e quanto continuam ecoando as vozes
de deuses mortos, tradições mofadas, ideologias totalitárias e castradoras,
mesmo tendo deixado os templos. Alguns nem isso fizeram – continuam lá dentro,
servindo fielmente aos dogmas. Quando se trata de uma pessoa ateia, isso é
ainda mais grave, porque se as luzes que há nela são trevas, quão densas são
tais trevas.
Grande parte disso se deve à falta de conhecimento, de
reflexão e também a uma espécie de comportamento de rebanho: um diz uma coisa
absurda, o outro curte, depois reproduz, e começa a ficar escravo desses
compromissos com o grupo que já estava formado quando ele chegou ou que vai se
formando a partir dessas interações. Começa a haver uma espécie de expectativa
de que se aja sempre de determinada maneira (conservadora), que se reaja contra
certas ideias (liberais), mesmo não entendo o que elas significam de fato.
E, como eu disse: o que me preocupa mais não são os
religiosos turrões, fanáticos, fundamentalistas, extremistas, cheirando à vela
ou com a cara enfiada numa Bíblia. Não. Conservadores desse tipo não são
novidade alguma. O que me incomoda é que o fermento do conservadorismo anda
levedando a massa de alguns ateus por aí. E boa parte deles não percebe isso.
Pior: quando têm a oportunidade de se debruçar seriamente sobre esses temas alguns
preferem adotar aquela postura “zoeira” que faz tudo parecer muito simples e
engraçado, mas não muda coisa alguma. É como alguém que viaja por uma estrada
deserta e quando o pneu do carro fura, ele sai e faz uma dancinha engraçada,
dizendo “pronto, zoei!”, mas o pneu
continua furado.
Bem, as razões porque sou um liberal estão aí. Pelo menos,
algumas delas. Espero que sejam suficientes para inspirar mais alguns a se
emanciparem do conservadorismo castrador, essa neurose que engravida ou é que parida
por outra neurose: deus! - difícil saber o segredo de Tostines. Alguns ateus e
agnósticos repetem o mantra de que ele morreu, mas continuam carregando o
cadáver como se algo do sagrado ainda precisasse ser preservado, mesmo que à custa
do racional e de valores dos quais não podemos prescindir jamais, quais sejam,
a liberdade, a igualdade e a fraternidade.
* Sergio Viula foi pastor batista, é formado em filosofia, administrador do
blog Fora do Armário www.foradoarmario.net,
autor de Em Busca de Mim Mesmo, livro que fala sobre religião, sexualidade e
ateísmo, Criador de Conteúdo da ARCA, e pode ser encontrado no Facebook em: https://www.facebook.com/sergio.viula